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Carta a meu pai
  
Querido pai!

Daqui a pouco completarás noventa e seis anos de nascimento. Uma longa estrada vivida com intensidade. Teu sonho de viajar comigo pelo mundo, eu sendo a tua intérprete de novos hábitos, de novas leituras deste mundo novo que te parecia irreal. Não acreditavas que o homem tivesse chegado à lua. Qual nada! Era invenção para enganar os incautos e arrancar dinheiro dos outros países, com promessas de tecnologia que não levaria a lugar nenhum. A prova disso eram os fracassos dos lançamentos feitos na base espacial de Alcântara.  O que eles queriam, de verdade, era uma desculpa para se apossarem daquele lugar, era a estratégia para tomar conta daquilo que era nosso, dizias.

Querias que um dos teus filhos fosse advogado ou militar. Mas perdeste muito cedo o teu primogênito e o outro filho homem era deficiente físico. A tua esperança voltou-se para mim, que gostava de estudar. Eu seria a tua advogada para defender a família de todos os problemas de onde quer que viessem.

Quando desejei estudar na capital e mamãe achava perigoso ficar longe de casa, ainda que estivesse com parentes próximos, foste tu, querido pai, que resolveste que se eu pretendia estudar ninguém iria impedir. Tu assumiste a responsabilidade por qualquer coisa que me acontecesse. Esta foi a exigência da minha mãe. Não vacilaste e, certa manhã de fevereiro, nós embarcávamos no trem Teresina-São Luís rumo ao meu sonho de estudar e vencer na vida.

As descobertas de um mundo diferente de tudo que conhecia. O mar, a Praia do Olho D’ água, o primeiro maiô, o cinema, o teatro, a retreta da banda da Polícia Militar, na Praça Deodoro repleta de estudantes, com os mais variados uniformes: marrom e branco do Ateneu Teixeira Mendes; azul e branco do Liceu; cinza e branco do Rosa Castro; azul e branco com blusa de malha dos Maristas e o meu bloco da vitória como chamavam o uniforme do Colégio São Luís, azul marinho e amarelo ouro.

Era uma festa para os olhos e ouvidos. As músicas, as brincadeiras dos colegas, tantos jovens a movimentarem-se pela praça. Os vendedores ambulantes com seus tabuleiros de quebra-queijo, manuê, os carrinhos de pipoca, picolé, churros, cocadas, mingau de milho (canjica), balas, etc. Toda tarde ao final das aulas a praça fervilhava.

E eu poderia nunca ter visto tanta alegria e animação se não fosse pela tua determinação de me levar para a capital, mesmo contrariando mamãe.

        O segundo domingo de agosto se aproxima. Não a data, mas a lembrança do teu carinho e proteção, da tua determinação em proteger meus sonhos de estudar, me faz sentir um aperto no coração e lamentar os treze anos de tua partida para outra dimensão.

As ações desencadeadas pela minha mudança, todos os meus projetos, só se realizaram graças à tua compreensão de que eu precisava partir para desabrochar. Obrigada, sr. Euzébio Alberto da Silva, meu querido pai.

Praia do Anil, 05 de agosto de 2009
Benedita Silva de Azevedo








Benedita Azevedo
Enviado por Benedita Azevedo em 08/08/2009
Alterado em 10/08/2009


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