Haicai, Verso e Prosa

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HAICAI SAZONAL BRASILEIRO: Uma tarde de estudos (InBrasCI e APALA)
Benedita Azevedo (08 / 07 / 2011)

O Haikai

 
Foi no séc. XVII, com Matsuo Bashô (1644-1694), grande mestre de haikai renga, que a forma hokku começou a ganhar presença autónoma e profundidade existencial. Mas só em fins do séc. XIX, Masaoka Shiki (1867-1902), considerado um dos quatros grandes mestres do haiku, faz a aglutinação dos termos “haikai” e “hokku”, criando o neologismo “haiku”, para designar o hokku (poema desmembrado do haikai renga e que adquire sentido completo), cuja forma fixou-se definitivamente como “terceto” composto de 17 sílabas e cujo eixo temático é um kigo.

O haicai no Brasil

O haicai teve duas portas de entrada no Brasil:
1ª porta) Com os imigrantes japoneses que começaram a chegar em 1908, depois com as traduções dos mestres nipônicos em francês, inglês e espanhol, que os intelectuais brasileiros, também no início do século XX, apreciavam.

O haikai no Brasil desembarca no porto de Santos. Shuhei Uetsuka (1876-1935) compõe ao aportar o Kasato Maru, com os primeiros imigrantes japoneses, este haicai:

A nau imigrante
Chegando: vê-se lá no alto
A cascata seca.

Em 1927, chega ao País o poeta japonês
Nenpuku Sato. Ele traz na bagagem um mandamento de seu mestre Takahama Kyoshi:

lavrando a terra
plante também
um país de haikai

 
A missão era uma honra, mas Nenpuku quase morre na chegada: um acidente de trem leva seu irmão. Com 29 anos se instala na Colônia Aliança, em Mirandópolis, interior de São Paulo. Nos primeiros anos, fortes geadas condenam seu cafezal. Tenta algodão, arroz e milho, que não vingam. Durante uma seca, sai em peregrinação por São Paulo e Paraná. Entre lavradores, inicia a missão de cultivar a arte do haikai, semeando em terras brasileiras a literatura milenar japonesa.
 
Um dos pilares do haikai é a referência sazonal:

na mira da carabina
a lua de primavera
caçando tatu

 
Mas o Brasil não tem estações do ano definidas. Então, para reeducar seus sentidos “desorientalizados”, Nenpuku busca registrar a paisagem tropical com um olhar oriental. É essa uma das maiores inovações de sua obra.

A lua crescente
na sobrancelha do papagaio
você não percebe?

 
Em 1935 difunde esses ensinamentos no jornal Brasil Jiho. Em 1948, funda a revista Kokage e assina uma coluna no Jornal Paulista, que circulam por 30 anos no País: frutos que Nenpuku Sato plantou e colheu no Brasil.

Com enxada estudei
aquilo que a terra ensinou
tocando a roça.

 
H. Masuda Goga que após conhecer Nempuku Sato em julho de 1935, passou a enviar seus haikus para serem selecionados pelo mestre e publicados na revista Nôgyô no Buragiru que circulava na colônia japonesa. Como um dos discípulos de maior intimidade e um dos redatores do Jornal Paulista, colaborou para concretizar o sonho sublime do "poeta agricultor". A relação de mestre e discípulo entre Nempuku e Goga foi mantida até o dia do falecimento do primeiro.

- Esta corrente define haikai como um poema escrito em linguagem simples, sem rima, estruturado em três versos que ao todo tenham dezessete sílabas poéticas; cinco sílabas no primeiro verso, sete no segundo e cinco no terceiro. Além disso, o haikai tradicional deve conter sempre uma kigo. Estas são palavras ou frases, utilizadas na poesia japonesa, que têm uma associação com uma estação do ano. Ex.:("sakura", "flor de cerejeira", é associada à Primavera) fonte: www.kakinet.com
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Afrânio Peixoto, primeiro autor brasileiro de haicai, em 1919, através de seu livro Trovas Populares Brasileiras, prefaciou suas impressões a respeito do poema japonês:

“Os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda que a nossa trova popular: é o haikai, palavra que nós ocidentais não sabemos traduzir senão com ênfase, é o epigrama lírico. São tercetos breves, versos de cinco, sete e cinco pés, ao todo dezessete sílabas. Nesses moldes vazam, entretanto, emoções, imagens, comparações, sugestões, suspiros, desejos, sonhos... de encanto intraduzível.
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À doutrina juntemos exemplos:

Na alcova desfeita,
Onde não há mais ninguém,
Uma flor caída.

(Bashô) - Não é um quadro e um poema?

Se na lua cheia
Imaginarmos um cabo...
Uma ventarola.

(Sokan) - É uma jocosa imagem.

Pétala caída
Que torna de novo ao ramo:
Uma borboleta!

(Moritakê) - Há impressão mais deliciosa?

Lírio teimoso,
Por quê, continuamente,
tu me dás as costa?

(Shikô) – É flor ou mulher?

Na festa das flores
Acompanhado pela mãe
Um pobre ceguinho.

(Kikaku) - Não é doloroso este contrate?

Pensei que nevava
Lírios...Minha brança amada
Vinha aparecendo...
(Iorikitô) – Que lindo alvorecer!

 
[Peixoto.Afrânio, in Trovas Brasileiras,
págs. 13 - 14, W.M. Jacson, INC. Editores,
Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, 1944]

Foi, ainda, Afrânio Peixoto, que fez a primeira referência textual do hai-kai em forma de ensaio, na revista Excelsior, em 1928. Mais tarde esse artigo foi utilizado no seu livro
 
“Missangas”– Poesia e Folklore,
publicado em 1931, pela Companhia
Editora Nacional, São Paulo – Brasil.

Naquela época, em que respirava os ares "verde-amarelo" do Movimento Modernismo, Peixoto defendia a naturalização do Hai-Kai. Dizia ele:

"Em francês, inglês, alemão aparecem haikais. Dir-se-há que assim não devera ser, e ao Japão os devíamos deixar. Então o epigrama ficaria heleno, a sátira romana, o romance novo-latino, o soneto italiano, a balada, a canção, o conto... seriam privativos de certos povos e não universais formas de arte... O haikai merece naturalização".


Para incitar os poetas nacionais, tão fáceis de obter maravilhas de adoção, o mais íntimo dos meus amigos lhes oferece esta recolta de haicais brasileiros, como se lhes desse kakis de Barbacena ou de São Pulo, já naturalizados, escreveu no ensaio "O haikai japonês ou epigrama lírico".

Disse ainda:

Bashô, o mestre de todos os grandes líricos japoneses do “haikai”, trinou: “Na composição não se vá compor de mais. Perder-se-ia o natural. Que vossos pequenos poemas venham do coração”. 

Afrânio deixa no ensaio 40 haicais brasileiros. Juntando aos 15 dos exemplos, são 55 poemas. O que daria um livro individual e ele seria também o primeiro a publicar um livro de haicai no Brasil.

Mas, o primeiro livro, exclusivamente de haicai, foi publicado por
Waldomiro Siqueira “Hai-Kais” em 1933.

Quem o popularizou, porém, foi Guilherme de Almeida, com sua própria interpretação da rígida estrutura de métrica, rimas e título.

2ª porta) Através do intercâmbio entre haicaístas japoneses e brasileiros, na década de 30, principalmente, pelo mestre de haicai, H. Masuda Goga, um dos fundadores do Grêmio Haicai Ipê de São Paulo.

Com a ambientação e a difusão do haiku em língua portuguesa, algumas correntes de opinião sobre este se formaram:

1ª - Os defensores do conteúdo do haiku são aqueles que consideram algumas características do poema peculiares, como a concisão, a condensação, a intuição e a emoção, que estão ligadas ao zen-budismo.
Oldegar Vieira é um haicaísta que aderiu a essa corrente.

2ª - Os que consideram a forma mais importante seguem a regra das 17 sílabas poéticas (5-7-5). Guilherme de Almeida não só aderiu a essa corrente como criou uma forma peculiar de compor os seus poemas chamados de haikais “guilherminos”.

Além de rimar o primeiro verso com o terceiro e a segunda sílaba com a sétima do segundo verso, Guilherme dava título aos seus haikais. Exemplo (GOGA, 1988, p. 49):

Noite.

Um silvo no ar,
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.


3ª - Os admiradores da importância do kigo respeitam em seus haikais o termo ou palavra que indique a estação do ano. Jorge Fonseca Júnior é um deles.

Apesar de existirem essas distinções retratadas aqui como correntes, nomes como os de Afrânio Peixoto, Millôr Fernandes, Guilherme de Almeida, Waldomiro Siqueira Júnior, Jorge Fonseca Júnior, José Maurício Mazzucco, Wenceslau de Moraes, Oldegar Vieira, Osman Matos, Abel Pereira e Fanny Luíza Dupré são importantes na história do haikai no Brasil. Novos autores também despontam na modalidade. Mas, este é um assunto para um ensaio com pesquisa cuidadosa.

Os Grêmios de Haicai

Os grêmios de Haicai brasileiros seguem a terceira corrente. “A fundação do Grêmio Haicai Ipê foi uma das conseqüências do 1º Encontro Brasileiro de Haicai, realizado em São Paulo, no ano de 1986. O evento promoveu, pela primeira vez, a reunião de estudiosos e praticantes do haicai no Brasil. Alguns deles animaram-se a formar um grupo de estudos no ano seguinte, adotando a denominação atual.

De início, as reuniões do grupo enfocavam o estudo teórico do haicai, sua história e características, além de analisar a expressão dessa forma poética tanto entre os mestres japoneses como entre os poetas brasileiros. A partir de 1989, passam a privilegiar a prática da composição de haicais em língua portuguesa, adotando o sistema de “concurso interno”, similar aos dos grupos de haicai em língua japonesa, em que os trabalhos de cada um dos membros são votados por todos os demais.

Gradualmente, impõe-se a liderança de Goga Masuda, um dos fundadores do grêmio e veterano mestre de haicai em língua japonesa que, desde 1936, já vinha pesquisando as manifestações do haicai em língua portuguesa. Sob sua influência, adotou-se o conceito japonês de kigo (tema sazonal) como eixo da composição, característica que, junto à forma métrica de 5-7-5 sílabas, define o formato dito “tradicional” do haicai e caracteriza a produção do grupo até o presente.

A experiência do Grêmio Haicai Ipê, fundado em 15 de fevereiro de 1987, por Roberto Saito, Francisco Handa e Masuda Goga tem como objetivo o estudo e prática do haicai em língua portuguesa, influenciou a formação de grupos similares em diversas localidades do Brasil.
Alguns exemplos de haicai sazonais brasileiros.


Jacarandá em flor –
Saudade da minha mãe
Que gostava de roxo.........(H. Masuda Goga)

Súbito trovão –
O ronco no quarto ao lado
Cessa de repente...........(Teruko Oda)

Estação chuvosa –
Quando o sol, enfim desponta,
Um grito animado.........(Edson Kenji Iura)

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Homenagem aos haicaístas do Rio de Janeiro:
Grêmio Haica Sabiá e Águas de Março


Ao fim do dia
Garças de volta ao ninhal –
Uma atrás da outra.......(Benedita Azevedo)

Cai o aguaceiro –
Cessa a conversa no carro
Por alguns minutos..........(Guin Ga)

Tarde de verão –
Que refrescante
O cheiro da chuva!.........(Celso Pestana)

Nos bancoas da praça
Casais em juras de amor...
Noite de verão.................(Iraí Verdan)

Manhã tão fria!
Uma flor de cerejeira
Caída no chão................Lourdes Fontes

Sopra um vento frio –
Passarinho se arrepia
No galho sem folha..........(Maria Nascimento)

Biquini ousado –
Ao passar, no seu balanço
Ouve-se um fiu-fiuuuu.........(Marilza de Castro)

Madrugadas frias
E manhãs ensolaradas –
Agosto chegando. ..............(Mria Madalena Ferreira)

Jardim japonês –
O son de passos espanta
Casal de libélulas.............(Nelson Savioli)

Início de outono...
E um voo de pássaro
Se oculta na nuvem.........(Regina Coeli)

Estrela cadente –
Um poeta pela rua
Imagina um verso-.........(Regina Célia de Andrade)

Ceia de Natal –
Vindo na cesta de frutas
Gostoso perfume... .........( Sylvia Mercadante)

Primeiro de abril!
No rosto da molecada
Um sorriso alegre............(Vanise Buarque)

Sopra o vento frio
Na praia longa e deserta –
No coração um vazio.........(Wanda Brauer)

Um cheiro doce...
As flores anunciam
A lua cheia.................(Yara Simada Broto)


O que significa originalmente haikai?

" 1. A palavra haikai é composta de dois ideogramas chineses (hai=俳 e kai=諧) que, juntos, têm o significado de brincadeira, piada, humor, chacota, leviandade ou falta de seriedade.

2. Haicai (com c), em português, quer dizer “poema japonês constituído de três versos, dos quais dois são pentassílabos e um, o segundo, heptassílabo” (Aurélio).

3. Haikai (com k), em japonês, é modernamente equivalente a “haikai-renga”, ou “poemas encadeados humorísticos”. Também é usado como um denominador comum para abarcar todas as formas artístico-literárias que lhe são derivadas, como haiku, senryû, haibun, haiga, renku, etc.

4. Haiku, em japonês, denomina poemas de 5-7-5 sílabas e referência à estação do ano. Mas também existem poemas haiku contemporâneos, de métrica e temática livres.
(kakinet.com)
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Haicai como expressão
A arte serve para proporcionar prazer estético e provocar reflexão nos seus apreciadores. Para os artistas, é um veículo para canalizar seus anseios, medos, alegrias e questionamentos. Assim, dizemos que a arte serve como meio de expressão da individualidade. Muitos artistas dizem que uma força interior os obriga a executar seus ofícios, como se fosse necessário esvaziar tudo o que guardam dentro de si, seja na pintura, na escultura ou na poesia.
Aparentemente, o haicai não dá tantos meios para a expressão da individualidade. Dizemos que o poeta deve colocar de lado os seus sentimentos para deixar que a natureza fale por si. Para isso, deve escrever poemas objetivos, com pouco espaço para dizer o que pensa. Na verdade, o bom haicaísta tem uma maneira muito mais poderosa de expressar seus sentimentos. Isso não ocorre de forma direta, mas pelo uso dos elementos da natureza como porta-vozes. Chegar a esse estágio demanda estudo e prática. É a marca dos mestres.

Quanto mais se escreve, mais se descobre as limitações, ainda assim, passa-se até a saborear os momentos de aflição vividos na procura pela melhor expressão. Isto é o que se chama, em japonês, de kugin, poesia sofrida. Os versos obtidos sob tais circunstâncias tornam-se motivo de especial satisfação para o seu autor. O prazer de compor, assim como a alegria com o resultado tornam-se muito maiores. Não é exagero dizer que essa é a melhor parte da composição do haicai. Sendo a menor forma poética do mundo, certamente é também a que traz maior satisfação. Para compor haicai, nenhuma qualificação é necessária. Basta gostar e ter vontade de escrever. Sendo assim, a inspiração para compor pode ser encontrada em qualquer lugar. Sem discriminar velhos e moços ou homens e mulheres, o haicai é um ato de expressão simples e divertido.

(Adaptado de Ooi, Tsuneyuki. Haiku tsukuru tanoshimu happyô suru. Tóquio, Seitôsha, 2004. ISBN 4-7916-1079). (Pétalas ao vento)
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O que escrever?
Como o haicai é um tipo de poesia, as pessoas, na hora de escrever, esperam que alguma inspiração caia do céu e, junto com ela, o haicai pronto. Entretanto, o haicai não funciona assim. O mais importante, antes de tudo, é estar atento ao mundo por meio dos cinco sentidos. Vamos dar dois exemplos. Ao entrar no escritório, um pouco antes do expediente começar, a única pessoa que encontramos é a faxineira. Estamos no inverno, faz frio de manhã e conferimos as manchetes do dia por meio da internet. Podemos escrever os seguintes haicais:

Manhã de inverno –
A faxineira em silêncio
Limpa a mesa vazia.

Manhã de inverno –
Notícias de guerra.
Na tela do computador.

Edson Iura – Pétalas ao vento
http://www.nippobrasil.com.br/zashi/2.haicai.petalas/407.shtml
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O Haicai nasce da experiência do poeta, através da observação da natureza no dia-a-dia. Como não utiliza metáforas é mais fácil de ser entendido, pois a natureza do haicai é infantil, por ver as coisas como realmente são. Diz ainda que as crianças quando são estimuladas, encontram seu próprio entendimento sobre o haicai, da mesma forma que aprendem a encontrar seu próprio entendimento de mundo, implicando mais em observação atenta do que conhecimento.

Ensina a professora Teruko Oda:
O ideal para se ensinar o haicai é colocar o aprendiz em contato com a natureza e pedir para que ele observe tudo em volta. Depois pedir que descrevam em três linhas tudo que lhes chamou a atenção. Deve-se depois refinar as descrições deixando somente o essencial e então transformar essas linhas em três versos de um haicai. Para se alcançar a concisão do poema é necessário insistir na simplicidade.

A inspiração para o haicaísta vem da vivência junto à natureza e da observação constante de tudo que nos rodeia.

Concurso interno: Os presentes na reunião serão convidados a escrever um haicai com kigo de inverno.

Rio de Janeiro, 08/07/2011
Benedita Silva de Azevedo
Benedita Azevedo
Enviado por Benedita Azevedo em 13/10/2019
Alterado em 08/02/2022
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