Haicai, Verso e Prosa

Letras e Sentimentos

Meu Diário
24/03/2008 02h59
Reportagem de O Globo sobre a fundação do Grêmio Haicai "Águas de Março"

No verão do Rio,
novo grêmio se forma.
Bem-vindo, haicai!
(OGlobo - 25/02/2008 05:00:07)
André Miranda 

O título aí do lado é um poema haicai - ou, melhor, uma tentativa de se escrever um poema haicai clássico. Parece simples, mas há regras rígidas a serem seguidas. São 17 sílabas, divididas em um verso de cinco, um de sete e outro de cinco. O poema tem que tratar de um evento específico, fazer referências à atual estação do ano, além de associar o efêmero ao permanente. O "efêmero" do título é que na semana passada foi realizado um encontro de poetas de haicai. O "permanente", por sua vez, é que esse tipo de encontro será realizado todos os meses, organizado pelo Grêmio Águas de Março, a oitava associação brasileira de haicai e a primeira com sede no Rio.
O encontro aconteceu numa sala da Fundação Roberto Marinho, no Rio Comprido, e marcou a fundação do grêmio. Cerca de 20 pessoas se deslocaram de suas casas - algumas, de Niterói e São Paulo - num dia de sol para conversar, escrever poesias e festejar a criação da associação. Antes, o estado do Rio tinha apenas um único grêmio de haicai, o Sabiá, com sede em Magé e fundado pela professora Benedita Azevedo. Agora, Benedita é também uma das responsáveis pelo Águas de Março:
- Em Magé, nós funcionamos há dois anos e temos seis associados. Nosso objetivo é ensinar o haicai nas escolas.
O inusitado pequeno número de participantes é considerado normal para uma forma artística com poucos adeptos no Brasil. O mais antigo grêmio do país, o Ipê, fundado em 1987 e com sede em São Paulo, tem entre 15 a 20 membros. O Águas de Março, por sua vez, vai iniciar suas atividades com 13 associados. E praticamente todos eles garantem que o gênero é muito mais do que um hobby.
- Eu uso o haicai nas empresas há 20 anos, como forma de capacitar os funcionários a serem mais objetivos. A comunicação malfeita nas empresas custa tempo e dinheiro - conta o executivo Nelson Savioli, autor do livro "Burajiru haicais".
"No Japão, o haicai é um gênero de poesia popular"
O primeiro encontro do Águas de Março começou com uma palestra do engenheiro Edson Kenjiu Iura, membro do Grêmio Ipê. Com traços orientais e fala mansa, ele foi convidado a vir ao Rio para apresentar a poesia de Matsuô Bashô aos membros da nova associação. A tarefa é das mais prestigiosas. Bashô é considerado o pai do haicai, é o japonês que lá no distante século XVII popularizou a poesia.
- Ele era um samurai de baixa posição antes de largar tudo para se tornar uma espécie de sábio - explica Iura. - No Japão, o haicai é um gênero de poesia popular. Tem programa de TV, os jornais publicam colunas sobre o assunto. Lá, são milhões de associações.
Na palestra, o engenheiro projetou num telão e comentou dez poemas de Bashô, tanto no original, quanto na tradução para o português. As pessoas no auditório ouviam tudo com atenção e faziam anotações. Algumas tiravam fotos, e uma participante ficou com a câmera digital levantada, gravando a palestra.
Como manda a tradição do haicai, os poemas de Bashô trazem claras menções a aspectos da estação do ano - o que os adeptos da poesia chamam de "kigo". Pelos versos "Primeira chuva de inverno/ O macaco talvez queira/ Uma capinha de palha", Iura afirmou que Bashô se tornou cúmplice do macaco. Já em "Vai-se a primavera/ Lágrimas no olho de peixe/ E choram as aves", o engenheiro disse que se tratava de uma metáfora do poeta japonês ao abandonar seus discípulos.
Por mais que pareçam estranhos para quem não está acostumado com o formato, os poemas de Bashô impressionam. Ainda mais quando se entende o contexto em que eles foram escritos. Pelo haicai "Ah, rouxinol¡/ Defecou sobre o moti/ À beira da varanda", Iura explicou que moti é um tipo de bolo e afirmou:
- O rouxinol é considerado o mensageiro da primavera. Bashô toma um pássaro tão apreciado pela tradição e o põe em posição vulgar. O poema fala de um ambiente em que animais compartilham o mesmo local com os homens, sem medo.
Depois da palestra sobre Bashô, os participantes do primeiro encontro do Grêmio Águas de Março foram convidados a elaborar seus próprios haicais, num concurso chamado "sekidai". Benedita propôs dois temas para as poesias: "arco-íris" ou "flamboyant". Cada um pegou um papelzinho, uma caneta e passou a escrever. O resultado será divulgado entre o grupo, pela internet.
- O haicai é um ótimo exercício, principalmente para criança. É uma forma de ela expressar com espontaneidade sua emoção - garante a professora Teruko Oda, que ensina haicai em escolas da rede pública de ensino de São Paulo.
O Ocidente começou a descobrir o haicai no século XIX, com a abertura da cultura japonesa para o mundo. Foram poetas franceses e ingleses que passaram a divulgar a poesia. Desde então, autores como W. H. Auden, Jorge Luis Borges, Allen Ginsberg e Jack Kerouac fizeram haicais.
Pimentel, de 95 anos: "É a beleza pela síntese"
Já no Brasil as primeiras notícias sobre o gênero remetem a 1919, com Afrânio Peixoto, escritor baiano que foi membro da Academia Brasileira de Letras. Ele leu sobre o haicai em livros franceses e trouxe a arte para cá. A ele se seguiram outros entusiastas famosos, como Guilherme de Almeida, Paulo Leminski e Millôr Fernandes.
- O haicai tem que ser uma experiência sincera. Não dá para se escrever sobre algo que não se conhece - conta Douglas Eden Brotto, um capitão de fragata aposentado de 70 anos que, no encontro, não tirava os óculos escuros estilo Rayban. - Eu sempre fui muito poeta para chegar a almirante.
Brotto não era o poeta mais experiente na reunião do Águas de Março. Esse título informal pertencia ao jornalista fluminense Luis Antônio Pimentel, de 95 anos. Pimentel era tratado por todos os presentes com reverência. Ele conheceu o haicai quando morou no Japão, entre 1937 e 1942, fugindo do Brasil depois de fazer campanha anti-integralista contra Getúlio Vargas. Desde então, já publicou 22 livros sobre a poesia japonesa.
- O haicai não é apenas a menor poesia canônica do mundo. É a beleza pela síntese - diz Pimentel.
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Publicado por Benedita Azevedo em 24/03/2008 às 02h59
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