Haicai, Verso e Prosa

Letras e Sentimentos

Meu Diário
26/07/2020 02h04
Histórias e Fotos - Capítulo IV

 Assumindo a família, sem lenço e sem documento.

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Após concluir o primário em 1959 e fazer o preparatório para o exame de admissão, decidira continuar os estudo  e contei com o apoio de meu pai para convencimento de minha mãe, que em casa da tia eu estaria segura.  Trabalhei mesmo contra a vontade deles, no comércio e estudei a noite, nos anos de 1960 a meados de 62 quando me casei. O período que trabalhei no comércio entre março de 71 e junho de 62 foi o tempo que tive para sair com amigos, ir ao cinema e dançar no vesperal do Sindicato dos comerciários. Em 1962 participei da Festa de São Benedito e dancei meu primeiro e único baile daquela década. Após o casamento, aquele meu espírito de independência simplesmente fora jogado para baixo do tapete. O marido com 35 e eu com 18 anos, aos 19 e 20 me tornara mãe de duas crianças lindas e precisei abdicar de tudo. Continuar os estudos nem pensar. Passei a exercer apenas as funções de esposa, mãe e dona de casa.

Felizmente, em compensação, o marido sabendo do meu hábito da leitura encheu-me de livros. Comprou o Tesouro da Juventude, edição 1963, uma coleção de romances históricos da Editora Cultrix, com 10 volumes, a coleção filosófica de Humberto Rohden com 11 volumes dentre eles, O Sermão da montanha, Sabedoria das palavras, Mahatma Gandhi, De alma para alma, O caminho da felicidade e outros. Assinou a revista, Seleções, O boletim mensal de Portugal e O Cruzeiro, onde Raquel de Queiroz escrevia a última página. Eu lia tudo e amava as piadas do Amigo da onça.

Uma década de autoaprendizagem através da leitura. Quando em janeiro de 1971, ele fez a cirurgia para retirar o rim, a loja começou a dar problemas. Talvez tivéssemos de fechá-la. Sem outra renda eu não queria voltar a ser balconista para trabalhar 44 horas e ganhar um salário mínimo, deixando o marido doente e os filhos sozinhos o dia inteiro. O menino com 8 anos e a menina com 7.

Então resolvi que era hora de voltar a estudar, mesmo que isso desagradasse o marido. Não tínhamos outra opção. Naquela época quem escolhesse a área de humanas, faria o Clássico. Quem preferisse a área de exatas faria o Científico. Como meu sonho era fazer direito, não precisava estudar matemática, Física, Química e Biologia que eram da área científica. No Clássico eu teria de estudar Português, História, Geografia, Sociologia, Filosofia, Educação Moral e Cívica e Espanhol, a língua escolhida, exatamente porque lia o boletim português em espanhol..

 Em abril de 1971 fui a Blumenau colher informações sobre o projeto  Madureza. Folheei as apostilas e achei que conseguiria fazer os exames do  1º Ciclo em julho. Comprei todo o material, para pagar em 30 dias.  Quando pedi  inscrição em todas as matérias, a coordenadora que tinha sido minha visinha na Ponta Aguda, em Blumenau, em 1969, mandou eu conversar com a Supervisora Pedagógica. Ela explicou que as provas eram difíceis e que havia alunos que ficavam anos para eliminar aquelas matérias. Sugeriu que para eu não perder o dinheiro da inscrição, seria melhor eu fazer  metade em julho e o resto em dezembro.  Eu disse a ela que pretendia fazer o vestibular para direito em 1972.

 Ela riu e disse que a obrigação dela era me alertar. Fiz a inscrição de todas as matérias. Virava a noite estudando. Os filhos iam para a escola pela manhã. Eu adiantava os afazeres domésticos e aproveitava qualquer  tempo para estudar .. Muita coisa eu já conhecia das minhas leituras no Tesouro da Juventude.  Eliminei quatro  matérias. Ficaram faltando duas. A banca examinadora  do Colégio Normal Pedro II em Blumenau - SC, considerando o grande número de alunos, foi até Itajaí aplicar as provas. Completei todas as matérias do  1º ciclo.

Realmente as provas eram  difíceis. O mínimo para ser aprovado era 50% de aproveitamento. Fiquei  com 50% em uma, 55% em outra e as demais entre 60 e 85%. Ali resolvi  mudar de estratégia. Faria o vestibular  em 1973. Enquanto isso eu arranjaria um emprego.

Juntei a matéria que precisava estudar para o 2º ciclo. Analisei o programa e priorizei as matérias que acabara de eliminar no  1º ciclo: Português, História,  Geografia  e Educação Moral e Cívica. Fiz a inscrição para dezembro do mesmo ano e consegui eliminar todas.  Agora só faltavam  duas  matérias: Espanhol e Filosofia. Fiz a inscrição para julho de 1972.

Mas  tudo isso tinha um custo e estávamos  com problemas na loja.  Soube através da vizinha que se eu conseguisse 30 alunos e levasse a relação na prefeitura conseguiria aulas no MOBRAL, mas tinha de ter também o local. As aulas começariam em março de 1972.

Perguntei se teria algum  problema eu não ter os estudos regulares e sim o Madureza? Ela disse que seria melhor eu ir à Secretaria de Educação pedir informação. Antes, porém, voltei a Blumenau e pedi uma declaração com as notas das matérias eliminadas do 2º ciclo, no Colégio Normal Pedro II.

Um dia, pela manhã, peguei caderno e  caneta e sai batendo de porta em porta, perguntando se havia alguém que não soubesse ler e quisesse aprender. Para minha surpresa, em dois dias tinha a lista pronta. Respirei fundo e fui ao Colégio São José conversar com diretora, Irmã Adelina, que já conhecia a nossa realidade. Mostrei a lista a ela e argumentei que todos moravam perto do Colégio e que era uma surpresa tantos analfabetos morando nas imediações.  Reiterei que sabia que as salas eram ociosas a noite.  Prometi que os alunos não teriam acesso às dependências do colégio. Que eu os acompanharia até o portão de saída. Eram só duas horas, das 19 às 21, quatro dias por semana.

A principio ela relutou, mas, disse que falaria uma reunião com as outras irmãs e me daria a resposta em uma semana. Eu tinha tanta confiança de que ela nos cederia a sala, que dali fui direto a prefeitura conversar com a Secretária de Educação, Dona Onadir Tedeu. Ela ouviu a minha história, olhou o certificado e a declaração do colégio de Blumenau, voltou a ler e perguntou: Você fez tudo isso este ano? Respondi que sim. Ela pediu a secretária que Chamasse  a Dona Hilária, coordenadora do Mobral e Educação Integrada. Mostrou o documento com visível admiração perguntou, o que achas de darmos uma oportunidade a ela? Olha a listagem com os alunos?  Ela poderá fazer o treinamento com os outros monitores e veremos como se sai. Pediu que eu tirasse uma cópia daquele documento para deixar com ela. Eu já as tinha levado.

Eu estava tão confiante que  iria conseguir que voltei para casa aos pulos. O que iria ganhar  era muito mais que o meio salário mínimo para trabalhar duas  horas à noite, quatro dias por semana. Era um recomeço. Com todos meus problemas, parecia voltar ao entusiasmo dos dezesseis anos, há uma década, ao iniciar o primeiro emprego.

Tivemos uma reunião com a Secretária de Educação, a coordenadora do MOBRAL e os sete alfabetizadores. Deu tudo certo. Recebemos as orientações da metodologia que se deveria aplicar e o material didático. Se houvesse desistências o material deveria ser devolvido. Começamos dia 02 de abril  de 1972.

.Esta é a foto da conclusão do curso preparatório dos alfabetizadores do MOBRAL , março de 1972

 

 


Publicado por Benedita Azevedo em 26/07/2020 às 02h04
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