Haicai, Verso e Prosa

Letras e Sentimentos

Meu Diário
19/10/2020 00h28
Histórias e fotos – capítulo XIX

 Outra mudança

Ao vender a casinha, em 1978, comprei uma Brasília 76, contratei um instrutor e aprendi a dirigir junto com os filhos. A nova casa adquirida no Maranhão Novo passava por adaptações e ficaria pronta em noventa dias. A princípio recusei mudar-nos para uma casa da firma enquanto a nossa ficasse pronta.

Entretanto, após a inundação da casa onde morávamos à Rua Graça Aranha, precisei aceitar. A própria firma fez a mudança. A casa localizava-se a uns 200m da nossa que estava em reparos. Assim pude acompanhar a reforma. O Amilcar já não falava, mas, ainda andava e pelos sorrisos gostou da mudança. O visual era lindo. Da porta da casa que ficava mais ou menos 30m acima da avenida lá em baixo, vislumbrávamos o horizonte em plano inferior, aonde hoje é o Shopping da Ilha, em direção à Av. dos Franceses.

A reforma demorou mais que esperávamos. Quatro meses. A casa era bem espaçosa. Com sala de vizitas, sala de jantar, três quartos, área de serviço e garagem. Amplo quintal e jardim. O sol da manhã incidia direto na frente da casa. Com o calor da minha terra, precisamos plantar árvores com urgência. Foi-nos recomendado algodão bravo. Realmente nos deu boa sombra muito rápido, além das belas flores amarelas.

Enfim, estávamos bem instalados em nossa casa. Aos finais de semana podíamos ir à praia onde Amilcar costumava levar os filhos desde recém-nascidos. Jane fora à Praia do Araçagí com quinze dias de nascida. Saíamos às seis horas da manhã e voltávamos às dez. Quando completou três anos e Rogério quatro, fomos para Santa Catarina onde ficamos dez anos, com rápida passagem por São Paulo.

Agora estávamos de volta há mais de dois anos. Já na terceira mudança de casa. Mas, em nossa casa, com nosso carro para levar Amilcar para passear, ao médico e hospital. Enfim, eu tinha meu trabalho com carga horária completa, nos três turnos, na profissão que escolhi e realizei com meu próprio esforço. Sem dever nada a ninguém. A casa era financiada em 25 anos, mas, com meu trabalho daria para pagar e mantê-la com tranquila simplicidade!

Os filhos estudavam no Marista e iam comigo todos os dias. Em 1979, Rogério, então com dezesseis anos, a convite de sua professora de Análise Clínica começou um estágio remunerado, no próprio colégio. A Jane fez quinze anos e debutou no Lítero Recreativo Português junto com as jovens de sua idade. Era o sonho do Amilcar enquanto pode falar. Mesmo com a doença dele, fiz o possível para que nossos filhos tivessem uma vida normal, dentro das nossas possibilidades, mas, com o carinho e respeito que as condições do pai exigiam.

Minha mãe foi de Itapecuru a São Luís para uma revisão médica. Sempre muito preocupada com meu irmão, Euzébio Filho, sequelado da meningite que tivera aos três meses de idade. Nesses dias ela ensinou a neta a dançar a valsa. Ainda hoje trago em minha única retina a imagem dela, de vestido claro, ensinando os primeiros passos da valsa à neta. Depois rodopiando na sala de nossa casa no Maranhão Novo. Eu nem imaginava que ela soubesse dançar.

Ao se preparar para o baile, eu que conhecia o desejo do pai, de que a filha debutasse no Lítero, peguei-a pela mão e levei até o quarto. Precisavam ver a expressão de júbilo no rosto dele. Arregalou os olhos e abriu um lindo sorriso. Ela se aproximou, abraçou e beijou o pai. Depois ao ver as fotos riu e chorou. Quando eu as guardei, ele piscou várias vezes. Entendi que pretendia ver outra vez. Aos poucos repassei todas bem devagar. A cada foto era um sorriso. No dia seguinte, um domingo, após tomar o café da manhã ele começou a piscar. Queria ver as fotos. Mostrei todas. Às vezes, quando eu trocava de foto ele piscava, piscava, queria ver mais um pouco a anterior. Era um diálogo em gestos que só o amor nos ensina a entender.

Naquelas férias de final de ano, passamos bastante tempo juntos. Foi doloroso ter de sair para trabalhar, na volta às aulas. Maria, a cuidadora, me tranquilizava. Não se preocupe, eu cuido dele direitinho. Qualquer coisa, telefono para a senhora.

No Marista, algumas vezes precisei sair às pressas. Irmã Esmeralda era enfermeira, trabalhava no colégio para pequenos atendimentos às crianças. Duas vezes me acompanhou até à casa. Numa delas o levamos para o hospital. Ele chorou quando soube que teria de ficar internado. Chamei meu filho, para ficar com ele, enquanto eu voltava ao colégio. Revezávamos, eu e os filhos. A Irmã se ofereceu par ir duas manhãs que eles tinham prova. Voltou para casa após uma semana. Estava bem melhor. Quando o colocamos na cama em nosso quarto, ele abriu um sorriso.

Nossa vida com o Amilcar doente era sempre um sobressalto. Ao sair pela manhã para o colégio, nunca sabíamos o que poderia acontecer. Eu fazia de tudo para que os filhos não fossem sacrificados. A casa vivia cheia de amigos deles nos finais de semana. Já não íamos à praia aos domingos. As condições do pai não mais permitiam. Aproveitavam para estudar, eu preparava as aulas da semana, lia trabalhos... ao final do bimestre, eles me ajudavam a corrigir a parte objetiva das provas, com o gabarito. Eram momentos de sobressaltos, mas, equilibrados.

Esta foto foi feita quando mudamos para nossa casa definitiva, no Maranhão Novo, em 1989. Eu com 35 anos, um filho de 16 e uma filha de 15 anos.


Publicado por Benedita Azevedo em 19/10/2020 às 00h28

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