Haicai, Verso e Prosa

Letras e Sentimentos

Meu Diário
23/10/2020 09h40
 Histórias e fotos- capítulo XX

  O sofrimento do marido chega ao fim.

Nossa vida com o Amilcar doente era sempre um sobressalto. Ao sair pela manhã para o colégio, nunca sabíamos o que poderia acontecer. Já não íamos à praia aos domingos. Os filhos eram compreensivos. As condições do pai não mais permitiam. Ao final do bimestre, eles me ajudavam a corrigir a parte objetiva das provas, com o gabarito. Eram momentos de sobressaltos, mas, equilibrados. Foi muito difícil quando tive de fazer um plano funeral. Há muito eu sabia que a doença dele era irreversível. Mas, ainda não tivera coragem para aceitar isso por completo. Aproveitei uma promoção e fiz um plano com carência reduzida.

Em julho de 1980, faria 10 anos que tivera o AVC. Começamos o ano apreensivos. Os filhos no terceiro ano CI (Ensino médio) precisavam ter dedicação maior aos estudos. O pai só piorava. Em março, logo após o início das aulas, teve uma piora acentuada. Comentei com ele que seria necessário ir para o hospital. Trocamos um olhar piedoso e suas lágrimas desceram. Entendi que ele não queria ir. Saí do quarto para me recompor de tanta emoção. Resolvi pedir uma licença de 30 dias nas aulas da noite e contratar a Irmã Esmeralda, enfermeira, que passou a ir todos os dias, pela manhã, fazer os curativos e controlar o soro. Eu ia almoçar e a levava para o colégio a tarde, seu horário de trabalho. Em abril mamãe foi de Itapecuru passar uns dias e acompanhá-lo na parte da tarde, enquanto eu voltava para o Marista com a Irmã.

No feriado da Semana santa, notei que ele estava com uma ronqueira no peito. Chamamos o médico. Ele disse que estava chegando ao final o sofrimento dele. Chamamos o padre para lhe dar a extrema unção no dia 22 de abril. Amilcar respirava com muita dificuldade. Estávamos todos à sua volta: Eu, mamãe, Rogério, Jane e Maria, a cuidadora. Ao término da cerimônia, Rogério foi levar o padre. Os outros se afastaram do quarto. Ao ver Amilcar naquelas condições, não resisti. Deitei ao seu lado. Aconcheguei-me a ele, pus a cabeça em seu ombro e falei: “Meu amor, perdoa-me por tudo. Por não poder ter ficado ao teu lado por mais tempo. Se eu pudesse teria ficado todos os dias à sua cabeceira, para lhe dar o apoio da presença. Mas, eu precisava trabalhar para cuidar dos nossos filhos. Você viu como estão bonitos?! Já terminam o científico este ano (segundo grau). Jane quer fazer Odontologia e Rogério, Farmácia. Vou continuar trabalhando muito para que eles atinjam seus objetivos. Você pode descansar em paz, eu prometo fazer tudo para que eles tenham aquilo que nós dois, juntos, sonhávamos: uma vida digna e honesta. Sei que você sofreu muito. Os ciúmes faziam parte da sua natureza. Queria-me só para você e foi assim até hoje.

Surpreendentemente, Amilcar, que perdera os movimentos das articulações há bastante tempo, pelo efeito da esclerose, levantou o braço esquerdo, afagou meus cabelos e chorou convulsivamente. Eu não entendi como pode ter acontecido. Como arranjou forças para levantar aquele braço inerte?! Fazia tanto tempo que não tinha um carinho e me deixei ficar ali, até que ele se acalmasse e adormecesse. Levantei devagar e fui conversar com a mamãe. Ela chorava. Assistira da porta a cena comovente.

Na manhã seguinte, Amilcar amanheceu melhor. Os olhos brilhavam. Quando entrei com o café, ele sorriu. Mais uma vez me desculpei por não poder ficar mais tempo com ele. Precisava trabalhar. Mas, se precisasse Maria me chamaria eu viria correndo. Prometi chegar mais cedo. Estava de licença à noite. Diante da melhora do genro mamãe voltou para Itapecuru.

Passados doze dias da extrema unção, na véspera do aniversário dele, num sábado, eu trabalhei em casa, corrigindo provas na parte da manhã. Maria avisou que Amilcar não comera o lanche. Fui ao quarto e percebi que ele não conseguia abrir direito os olhos. Seu globo ocular parecia dançar de um lado para o outro na órbita. Preparei um copo de leite e lhe dei às colheradas. Ele tomou com dificuldade. Fiquei ao seu lado segurando-lhe a mão até ele dormir. Verifiquei sua temperatura, estava normal.

Deitei-me a seu lado, na rede. Acordei cedo e lembrei de que era aniversário dele. Mesmo doente, todo ano eu e os filhos cantávamos parabéns. Fiquei a olhá-lo da porta. Continuava sem abrir completamente os olhos. Peguei a mão dele e beijei. A temperatura ainda estava normal. saí e fui corrigir provas enquanto Maria tentava lhe dar o café. Ele não se alimentou. Na hora do almoço não abriu a boca para comer.

A vizinha da frente chamou Jane para mostrar um trabalho escolar que estava fazendo. Rogério lavava o carro na calçada da casa. A Irmã Esmeralda, como aparentemente ele tivesse melhorado, foi passar o final de semana no convento onde morava. Mas, qualquer coisa era só telefonar que ela viria.

Preparei um copo de leite para Amilcar. Ele estava com a respiração ofegante. Coloquei a primeira colherada em sua boca e observei a ponta do nariz muito branca. Coloquei mais uma colherada. Pareceu-me que a área branca do nariz estava aumentando. Pousei o copo na bandeja e segurei a mão dele. Estava um gelo. Verifiquei suas pernas. Geladas. A área branca do nariz aumentava, parecia que o sangue estava fugindo. Compreendi que chegara a hora dele partir. Um tremor percorreu meu corpo. Pensei em chamar os filhos, mas achei melhor não assustá-los. Segurei a mão dele e comecei a rezar em voz alta o Pai Nosso e a Ave-Maria. Quando terminei, ele deu um sorriso e parou de respirar. Senti um vazio angustiante enorme! Já esperávamos por isso, mas o fato consumado é assustador. Coloquei as mãos dele sobre o peito e olhei o relógio. Catorze horas do dia 04 de maio de 1980. Aniversário dele de 53 anos. Quase 10 após o AVC.

Respirei três vezes, profundamente, tentando readquirir o equilíbrio, e fui à frente da casa chamar os filhos. Na volta, abracei-os e falei com cautela:

 - O pai descansou. Já estava sofrendo muito. Os dois saíram correndo para o quarto. Rogério chorou baixinho. Jane perdeu o controle e lamentou:

- Eu pensava que meu pai pudesse melhorar. Eu não queria que ele nos deixasse. - Chorava. Abracei-a e tentei acalmá-la. Levei-os para a sala e falei:

- O pai já estava sofrendo há muito tempo. Deus teve pena dele e lhe deu o descanso. Não significa que esteja morto para sempre. Um dia nos encontraremos outra vez.

Eu queria pedir ajuda ao Bosco, um amigo e vizinho, mas, Rogério fez questão de ir à funerária contratar o velório. Telefonei para a Irmã Esmeralda, que prometera preparar o corpo. Liguei para os amigos mais próximos, para mamãe, para o colégio e para os irmãos de Amilcar. Os de São Paulo e o de Santa Catarina. Pedi aos cunhados que avisassem o pai e as irmãs em Portugal.

Nos dois anos que ficou de cama, só três amigos dele o visitaram. O Sr. Resende, a madrinha do Rogério e o Sr. José Leite e esposa. Talvez eu involuntariamente, tenha me afastado. Com uma jornada muito grande de trabalho, além dos cuidados que precisava ter com o marido, não me sobrava tempo para as relações sociais.

Irmã Esmeralda chegou e preparou o corpo. Vestiu a roupa, calçou os sapatos, amarrou a gravata e ficou aguardando a funerária. Rogério chegou acompanhado de um amigo. O carro funerário colocou os ornamentos na sala de visita para compor o velório.

Os amigos começaram a chegar. O apoio maior veio do pessoal do Marista onde eu trabalhava. D. Vilma, Bosco, Marialda e outros passaram a noite. Mamãe chegou na manhã do dia seguinte, antes do enterro que saiu às dez horas, do dia 5 de maio de 1980.

Bosco, coordenador do Serviço de Orientação Religiosa do Colégio Marista, encarregou-se de organizar a missa de sétimo dia, a ser celebrada na capela do colégio, com a presença dos alunos do segundo científico, colegas de Jane e Rogério. No dia, a capela ficou repleta. Eram quase 200 alunos nas 5 turmas.

Amílcar, depois de tanto sofrimento, merecia aquela missa bonita, celebrada pelo capelão do Marista, Padre Paulo.

Esta foto foi recuperada de um crachá.

 

 

 

 

 

 

 

 


Publicado por Benedita Azevedo em 23/10/2020 às 09h40
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