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A vida continua...
Benedita Azevedo

Eurídice chora a morte do marido de quem já estava separada havia muitos anos. Ele se casara com outra e ela com outro. Mas, continuavam amigos. Pois, tinham um casal de filhos, já adultos, que sempre contara com a assistência do pai. Ele desenvolveu um câncer e foi tratado com carinho pela nova esposa, que tivera um filho do primeiro casamento, e não quiseram outros. O rapaz vivia com o pai na Europa.

Sempre que podia, Eurídice visitava o ex-marido. Os três conversavam  civilizadamente. As duas mulheres da vida de Artur desdobravam-se para tornar mais leves seus últimos dias de vida.

A Doutora  Eunice, especialista em oncologia, acompanhava o paciente com desvelo. A esposa e Eurídice sentiam-se gratas por poderem contar com uma profissional tão dedicada, cuidando de seu ente querido. A médica chegou a arranjar uma enfermeira para que ficasse ao lado do enfermo, quando seus familiares não  podiam atendê-lo. Segundo a médica, não era preciso preocuparem-se com a remuneração da profissional, pois era uma gentileza que a amiga, enfermeira, lhe prestava, em seu dia de folga. Os filhos comentavam com a mãe, sobre a necessidade de recompensar aquela profissional, aida que fosse com um bom presente.

Numa crise mais grave,  as duas mulheres e os filhos foram chamados às pressas. A equipe médica que o atendera saiu. A Doutora Eunice permaneceu no quarto ao lado da enfermeira. Depois, dirigiu-se ao moribundo, tomou suas mãos, e, diante da família agradeceu por não lhe ter deixado desamparada, após sair da firma grávida.

A esposa de Artur trocou olhares com Eurídice,  sem entender nada. Os filhos olharam para a mãe e depois para o pai, alheios ao assunto. O pai, arquejante, passava os olhos de uma para a outra das três mulheres. Eunice pediu que todos saíssem para o doente descansar. Mas, Artur, com dificuldade, segurou na mão da esposa que estava à sua esquerda e na de Eurídice à sua direita. Todos ficaram atentos. Ele pediu perdão a uma e à outra e confessou que tivera uma filha fora do primeiro casamento. E que  era mais nova que o filho mais velho, apenas dois meses. Eurídice soltou a mão dele, que continuou o relato: A mãe de sua filha era sua secretária do escritório de sua firma. Ao saber da gravidez, despediu-a, mas, deu-lhe todo o apoio. A filha crescera e ao completar sete anos, perguntara pelo pai. Todas as crianças tinham um, por que só ela não? Então ele a registrara e passara a acompanhar seu desenvolvimento. Era uma menina inteligente e  conseguiu fazer o curso superior, e neste momento era uma excelente profissional.

Lágrimas corriam-lhe pela face. Observado por quatro pares de olhos incrédulos e dois surpresos, Artur continuou sua revelação: Disse que nunca pensou em desrespeitar ninguém. Mas que, o convívio diário com aquela moça tão gentil e solícita, acabara lhe despertando um sentimento que o arrebatou para seus braços. Ainda tentara se afastar, pois gostava da esposa que estava grávida e o amava muito. Então soubera que a moça também estava grávida. Tentando evitar comentários e problemas para si e a secretária, sugeriu que se demitisse. Nada faltaria para ela e a criança. Ainda conseguira levar o casamento por alguns anos e tivera mais uma filha com Eurídice. O desgaste no relacionamento foi recíproco e acabaram se desquitando, amigavelmente. Mesmo gostando da sua ex-secretária, não a amava o suficiente para lhe propor casamento. Continuou a lhe prestar toda a assistência e passou algum tempo sozinho. Só bem mais tarde, quando os três filhos já estavam crescidos, encontrou e se apaixonou pela mulher que hoje é sua esposa.

A esse ponto do relato as três mulheres choravam. Doutora Eunice enxugou a testa do moribundo e queria que ele descansasse. Mas, ele continuou... Nunca deixei faltar nada para nenhum dos meus filhos. Nem para minhas mulheres. Nem vai faltar quando eu não estiver mais aqui. Está tudo resolvido. Meu advogado já está instruído a resolver qualquer problema. Todos vão ficar bem. Não quero brigas após a minha partida.

Era uma cena comovente. Artur com as duas mãos segurando as das mulheres. Os filhos ao lado de Eurídice, a médica e a enfermeira ao lado da esposa. Artur respirou fundo. Apertou a mão das mulheres e continuou: Não fiz nada de mal para ninguém. Assumi as responsabilidades de todos os meus atos. Esta vida de aperfeiçoamento que levamos aqui é breve passagem. Cumprimos a nossa missão e vamos para outra esfera. Com certeza  encontrarei amparo. Terei todos os cuidados que tenho aqui, e os parentes muito amados estarão à minha espera. Não quero que lamentem a minha partida, apenas orem, para que eu tenha êxito em minha nova vida.

Eurídice, a mais inquieta, perguntou quem era sua filha e onde ela estava?  Artur parou de falar, passou os olhos por todos eles e pendeu a cabeça no travesseiro. - Não o deixe morrer, eu preciso saber quem foi a mulher que destruiu meu casamento. Logo que eu engravidei do meu primeiro filho, Artur ficou indiferente. Chegava em casa tarde, sempre cansado, muitas vezes nem jantava. Dizia que estava sem fome. Engravidei da minha filha tentando reconquistá-lo, mas não adiantou nada. Acabamos nos separando. Agora está tudo explicado.

Doutora Eunice auscultou seu coração  e constatou que estava morto. Pegou suas mãos e beijou, demoradamente. Depois se abraçou à enfermeira, aproximou-se do morto, pegou sua mão e falou: “Obrigada, pai, por me amparar e cuidar de mim e de minha mãe”.  Virou-se para a enfermeira e agradeceu:  “Obrigada mãe, por me ajudar a cuidar do meu pai”. Eurídice  engoliu em seco e saiu com os filhos. A esposa a seguiu, pois precisava tomar as providências necessárias que a ocasião exigia. Eunice e a mãe permaneceram ao lado de Artur por mais algum tempo. Era a oportunidade que tinham, de se  despedirem daquele homem que tanto amaram e que sempre as tratara com dignidade e respeito.
Praia do Anil, 25 / 04 /09
Benedita Azevedo

(Conto classificado para publicação na revista japonesa: Nikkei Bungaku)
Benedita Azevedo
Enviado por Benedita Azevedo em 23/08/2009
Alterado em 08/05/2017
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