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O Barão de Mauá e o Dia da Baixada Fluminense

 
De acordo com as informações de Jorge Caldeira, no livro, Mauá, empresário do império, a combinação de ousadia nos projetos, prudência na execução e uma grande preocupação em gerir bem os recursos dos sócios, se completava com uma política administrativa totalmente fora dos padrões brasileiros. Os métodos de comando de Irineu eram quase inconcebíveis num país onde se considerava o feitor de escravos o homem ideal para comandar mão de obra. Mesmo sendo obrigado a lidar com a escravidão, ele conseguiu o milagre de misturá-la a um sistema de gerência altamente descentralizado que valorizava a responsabilidade individual de cada empregado.

Em primeiro lugar, limitou o emprego de escravos às situações em que não havia alternativa, e sempre que possível alugava escravos de outros senhores em vez de empatar seu capital neles. Depois obrigava que os escravos tivessem o mesmo tratamento dos homens livres no trabalho o que criava certa homogeneidade de comportamento nas empresas. Essas normas se completavam com uma política de valorização do trabalho: Irineu considerava um ótimo gasto investir em salários mais altos, para ter o melhor pessoal disponível a seu lado.
No caso dos escalões mais altos, a política de valorização do trabalho era mais radical ainda. Ele delegava autoridade, insistia para que seus comandados fizessem o mesmo, e costumava distribuir parte dos lucros entre os funcionários da empresa.Com esses métodos pouco conhecidos de gerência, Irineu deixava seus colaboradores confiantes para agir por conta própria nos momentos de dificuldade.
Irineu completava esta enorme disposição para se informar com uma qualidade que se tornou folclórica: sua capacidade de ler números. Ele era antes de tudo um grande especialista em contabilidade, mas, possuía também, uma memória fantástica. Mesmo quando anos mais tarde, chegou a controlar dezessete empresas, gabava-se de saber de cabeça as principais contas de cada uma.
 A soma de todas essas características resultava num estilo de negócios estranho aos costumes locais: corajoso, ágil, eficiente, que se casava com a proposta: progresso rápido no lugar dos empreendimentos tradicionais. E tudo se completava com o necessário impacto das novidades.
Irineu Evangelista de Sousa fundou, em um ano, quatro das cinco maiores empresas do país (a quinta era o Banco Comercial) e já era dono da sexta, o Estaleiro de Niteroi. Com isso atordoou o império, ele andava para um lado e o país ia para outro.
Nas eleições de 1852 os conservadores ganharam como nunca: os liberais só conseguiram eleger um deputado. Era a oportunidade que o imperador esperava para desestabilizar os vencedores. Antes da abertura da câmara em 1853 ele derrubou Euzébio de Queirós e o Marquez de Monte Alegre e colocou o ministro da fazenda do gabinete anterior, o visconde de Itaboraí, no comando do ministério.
O novo ministro, embora fosse amigo de Irineu começava a ver nele um homem perigoso, capaz de dominar o país em pouco tempo. Mesmo antes de completar seu projeto já era temido. Dono das fábricas, dos bancos, dos transportes e do Uruguai e acima de tudo, alguém muito independente.

Agora que os conservadores poderiam ter um pouco de paz, vinha Irineu com seus projetos, cuja lógica não conseguiam explicar. Para os tradicionais para quem Itaboraí dava ouvidos, só havia explicação suportável para um homem subir depressa: favorecimento do governo: Não houve empréstimo para a Ponta de Areia? Não foi o governo que pagou os encanamentos do Maracanã? E no Uruguai, então? A lista de concessões se tornou logo falada, uma série de outros indícios completava a argumentação: os senadores que eram acionistas nas empresas, os amigos da Corte que frequentavam sua casa. Tudo isso era muito mais fácil de entender que os meandros administrativos e os complexos mecanismos por traz das empresas.
Irineu sabia disso. Mas, logo haveria outras, lampiões e vapores para mostrar a correção do caminho que ele seguia. Tinha tanta certeza de que tudo mudaria que em vez de afastar os comentários ele os provocava. No dia 29 de agosto de 1852, transformou a cerimônia de inauguração das obras da estrada de ferro numa demonstração do poder de seus princípios.
Conseguiu fazer do imperador e de toda a corte dóceis instrumentos de sua afirmação, do modo mais apreciado dos brasileiros: uma mistura de festa, procissão, calor, parábolas e desfile de modas. Para dar mais brilho ao evento, encenou-o em seu território. Todos os convidados foram levados até o porto de Estrela em seus vapores e dali seguiram, em carruagem até o local da festa, o pasto da fazenda do comendador Albino José de Sequeira, no distrito de Inhomirim. Não faltava uma autoridade importante do país.

Estavam ali o imperador e a imperatriz, três dos seis ministros (o barão de São Lourenço, do Império; Zacarias de Góis e Vasconcelos, da Marinha; Manoel Felizardo de Sousa e Melo, da Guerra); o presidente do Senado, marquês de Sapucaí, acompanhado por três colegas; os membros da mesa da Câmara dos Deputados; o Conselheiro Ferraz, presidente da província do Rio de Janeiro; Joaquim Pinto dos Reis, presidente da Assembleia provincial carioca; dois conselheiros de estado (o marquês de Paraná, acionista da empresa, e o visconde de Monte Alegre); todos os oficiais de semana do Paço: camaristas, médicos, vereadores e oficiais de gabinete.

A uma hora da tarde, em pleno sol, todo o grupo em trajes de gala iniciou uma caminhada pelo pasto até um ponto marcado no capim, onde os esperava o vigário da paróquia local para dar a bênção nos trabalhos. Concluída a oração, Irineu entregou ao imperador uma pá de prata, com a qual este cavou três vezes a terra, despejando o produto num carrinho de jacarandá incrustado de prata. Depois, passou a pá a um ministro, que continuou a operação, repetindo em seguida o gesto e passando o instrumento a outro ministro. Irineu, homem com a fé no símbolo dos maçons, exultava: todo o poder de uma sociedade escravocrata que dispensava solenemente o trabalho curvava humildemente a espinha ante seu valor. Para realçar ainda mais o significado do gesto, fez questão de enfileirar todos os operários contratados para trabalhar na obra a pouca distância dos governantes.
Com suas roupas de festa, leves, aquilo também não deixava de ser um instrutivo divertimento para eles: viam mãos enluvadas pegando de mau jeito a pá, rostos muito vermelhos pelo desconforto que produziam roupas de veludo e casacos naquele soleirão. Rompia-se assim a aura sagrada que envolvia um poder que sempre fez questão da distância do trabalho, que nunca quis nada que sugerisse mistura com ele, mas que parecia agora muito prosaico.
O gesto final da cerimônia foi ainda mais patético. Cheio o carrinho, Irineu convidou o rei, já esbaforido para carregá-lo até ao local de descarga, vários metros adiante. Era uma tarefa muito constrangedora para sua Majestade, mas ele não teve como fugir. Ante os olhos curiosos da plateia, transformou-se num modesto carregador, arrastando a carga pelo pasto afora. Fez tudo aquilo com dignidade, manteve as aparências, mas possivelmente pensando em como se vingar da humilhação.
Enquanto Irineu Evangelista de Sousa puxava vivas ao imperador, à imperatriz, à constituição do império e à Nação Brasileira, Dom Pedro enxugava o suor da testa. Sorria amarelo e pensava. As asas daquele senhor petulante andavam crescendo muito depressa, e precisavam ser devidamente aparadas, antes que ele levasse longe demais suas ideias sobre o lugar de trabalhadores e dirigentes deste mundo.

No dia 6 de setembro de 1853, o dia da queda do gabinete do visconde de Itaboraí, que se tornara desafeto de Irineu, este levou um grupo de jornalistas e embaixadores para fazerem a primeira viagem de trem a ser noticiada na história do Brasil. Um jornalista do Jornal do Comércio, um dos convidados divulgou emocionado o evento. Em homenagem a Maria Joaquina, esposa de Mauá, a locomotiva que puxava os poucos vagões, recebeu o apelido de “Baronesa”.

Irineu Evangelista de Sousa entrou no ano de 1854 com um império ameaçado de acabar antes mesmo de começar. A empresa mãe do grupo, o banco, tinha passado para as mãos do governo; ele não tinha tido prejuízo com o negócio, mas estava perdendo a possibilidade de financiar todos os outros empreendimentos.
A campanha de estatização e do progresso rápido e a fama de argentário perigoso se espalharam pela cidade. Contra ela Irineu dispunha apenas de uma arma, mas, uma arma poderosa: apesar de todas as dificuldades, estava vencendo. Tanto a usina de gás como a ferrovia estavam ficando prontas. Para tentar calar o que chamava de “inimigos gratuitos’, resolveu comemorar as inaugurações com festas à altura da importância que dava aos empreendimentos.

A primeira festa aconteceu dia 25 de março de 1854. |Irineu simplesmente chamou à rua a população da cidade e mandou acender os lampiões. Segundo o Jornal do Commércio, conseguiu o impacto que planejou.

No dia 30 de abril de 1854, pouco mais de um mês depois de acesos os lampiões, boa parte das embarcações disponíveis no Rio de Janeiro foi tomada por gente bem vestida, logo no início da manhã. Todos queriam chegar cedo ao porto de Estrela, a fim de assistir ao desembarque dos convidados mais importantes. A agitação tomou conta do lugarejo; bandas de música, couro de meninos, foguetes, bandeirolas coloridas... Quando o barco que trazia o imperador chegou ao porto, formaram-se duas alas de nobres, ministros e funcionários graduados. Dom Pedro II saudou a todos e, acompanhado por Irineu, o presidente da companhia, dirigiu-se a um armazém onde tinham sido montadas arquibancadas, no centro das quais ficavam as cadeiras do imperador e da imperatriz, além do bispo, que tinham a importante função de batizar as locomotivas da primeira ferrovia brasileira.

Terminada a cerimônia, a comitiva embarcou nos vagões especialmente decorados para a viagem de catorze quilômetros até o vilarejo de Fragoso, feita em pouco mais de 20 minutos. Dos dois lados dos trilhos, oficiais da Guarda Nacional ficaram perfilados, enquanto os menos afortunados se espalhavam pelos morros para ver o trem passar. De Fragoso o comboio retornou a Estrela, onde seria servido um banquete na estação.

Antes da comilança, como é da tradição, começou a sessão de discursos, aberta por Irineu que resolveu bater de novo numa velha tecla, relembrando o episódio do lançamento de início da obra quando fez o imperador e ministros, simbolicamente, trabalharem.

Após 20 meses do início dos trabalhos, a diretoria da Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis ouviram do imperador as seguintes palavras:
"Os diretores da Imperial Estrada de Ferro de Petrópolis e da Companhia de Navegação a Vapor podem ficar certos de que por igual compartilho o seu regozijo na estréia de uma empresa que tem de animar tão grandemente o comércio, as artes e a indústria deste império".
Naquela solenidade, Luís pedreira do Couto Ferraz, Visconde do Bom Retiro, convenceu D. Pedro II a nobilitar Irineu com o título de barão. O próprio visconde deu a notícia ao novo barão de Mauá.
Naquele dia o homenageado tinha acabado de completar suas obras. Em oito anos, montou cinco grandes empresas; seu compromisso de dedicar a vida aos melhoramentos materiais do país estava sendo cumprido. Apesar de todas as dificuldades, ele era otimista o suficiente para comemorar o lado bom das coisas. O fato é que ele era barão, dono de estrada de ferro, estaleiro, companhia de navegação, companhia de gás e do dinheiro uruguaio.

O barão de Mauá estava forte como nunca, e queria mais. Tinha perdido uma batalha com a estatização do banco para o comando do progresso do país, é verdade, mas a guerra ainda estava longe de terminar.

O Dia da Baixada Fluminense foi instituído para ser comemorado a 30 de abril em homenagem ao simbolismo desta data tão importante, não só para a Baixada Fluminense, mas para todo o Brasil.

Praia do Anil, Magé-RJ, 30 de abril de 2014
aos 160 anos de fundação da Primeira Estrada de Ferro do Brasil.

Benedita Silva de Azevedo
Presidente da ACLAM
Benedita Azevedo
Enviado por Benedita Azevedo em 30/04/2014
Alterado em 15/12/2017


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