Haicai, Verso e Prosa

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Voando para casa.
          
Sobre as nuvens, o infinito circundado por montes brancos parecendo neve; uma tênue linha contendo restos de fragmentos escurecidos lembra as contenções nos rios poluídos. No meio uma vasta extensão azul-celeste afigura-se a um lago. Flutuam à superfície pequenos montes etéreos.
    
Ao atingir três mil metros de altitude a aeronave distancia-se de Porto Alegre e adentra em um campo nevado sobre retalhos de azul, quebrando a monotonia leitosa de pouca profundidade no fundo azulado. Pequenas ondas espalhadas pelo vento dão aparência trepidosa à imensidão, cheia de espuma espalhada sobre a superfície diáfana. Uma abóbada azul escuro circunda o avião, sendo que, na parte superior, o azul puro adquire um tom plúmbeo profundo, enquanto o reflexo prateado do Sol nas nuvens deixa a parte inferior azul-claro brilhante, dando um contraste digno de um haicai. Na barra lateral, estufada de marfim, separando a parte superior, pequenos relevos invadem o azul, dando lhe a aparência de longa colcha rendada nas extremidades, com detalhes assimétricos azulados, distribuídos ao longo da barra. A sensação de leveza da aeronave dá-me a impressão de partilhar dos elementos da paisagem. Neste momento, rendo homenagens a Santos Dumont e a todos aqueles que trabalharam em prol da evolução deste meio de transporte do século XXI.
    
Entramos agora, numa área onde as montanhas de nuvens tornam-se densas e parece uma cordilheira translúcida com depressões em azul.  Alongando a vista essas pequenas elevações vão se diluindo e transformam-se em um vasto lago prateado pelos reflexos do sol das catorze horas e vinte minutos.

O comandante acaba de anunciar a passagem sobre São Paulo e que em dez minutos começaremos a baixar e pousaremos às catorze horas e quarenta e cinco minutos. Junto veio o comunicado de chuva e trovoada sobre o Rio de Janeiro.
    
Em pouco tempo a aeronave mergulha num denso sítio esfumaçado que não nos deixa ver além do vidro cheio de gotículas estirando-se na direção traseira, empurradas pela pressão do vento. Instintivamente, olho para meu companheiro ao lado que, de olhos fechados ronca indiferente às condições climáticas que nos deixam imerso a um aguaceiro nevado. Os comissários de bordo conferem as portinholas dos bagageiros a ver se estão travadas, o que, de certa forma me deixa preocupada. Estiro o olhar na direção dos passageiros dos bancos laterais e percebo certa inquietação. Continuamos imersos no nevoeiro líquido, ouvindo apenas o ronco do avião. Olho o relógio.  Catorze horas e quarenta minutos.  A aeronave baixa o que se percebe pela direção das gotículas no vidro, alongando-se de baixo para cima. Parece-me mais tempo que o previsto. Olho de novo o relógio. Catorze horas e cinqüenta minutos. Viro-me para a janela, as gotas agora se alongam horizontalmente, sinal de que paramos de descer. Os comissários de pé pelos corredores parecem de prontidão. Os passageiros permanecem quietos. Alguns alongam o pescoço perscrutando os companheiros e trocam olhares significativos. Mais uma vez olho a vidraça da janela e vejo o alongamento das gotas em posição horizontal.  Fecho os olhos, cruzo as mãos sobre o colo e começo a rezar, sem alarde, calmamente. Repetindo o pai-nosso e ave-maria cinco vezes, em fieira. O chiado do microfone desliga-me da oração. O comunicado soou objetivo e seco: Recebemos autorização para pousar. Dou uma espiada por cima das poltronas, na direção da minha esquerda, e vejo alguns sorrisos. Olho através do vidro e ainda não enxergo nada. As gotas voltam a alongarem-se em linha inclinada para cima em direção à traseira. Passo a mão na vidraça e posso vislumbrar o casario lá embaixo. Desfaz-se o peso da minha inquietação. A aeronave avança em meio a retalhos de nuvens envoltas em transparente nevoeiro que aumenta a quantidade de gotas a alongarem-se na vidraça da janela. Quando o trem de pouso toca o solo, meu marido que se mantivera o tempo todo calado de olhos fechados, dá um profundo suspiro e exclama:
- Graças a Deus!!!
      
Rio de Janeiro, 12-11-2007
Benedita Azevedo

Benedita Azevedo
Enviado por Benedita Azevedo em 14/11/2007
Alterado em 23/10/2012


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